OBRA DE JORGE AMADO DENUNCIA VIOLÊNCIA (SEXUAL) DOMÉSTICA
"[Sobre
o romance de Gabriela com o turco Nacib, uma linda] história de amor, que (...)
começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno
Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua
esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, dada às festas de
igreja". ("Gabriela,
cravo e canela", romance de Jorge Amado, 1958)
É com essa frase que Jorge Amado inicia um dos seus mais belos e famosos romances, escrito por ele em 1958, para retratar a sociedade da pequena cidade de Ilhéus da década de 20. A vida da personagem Gabriela é narrada a partir dos acontecimentos desse vilarejo, dentre eles o mais expoente, o assassinato da Dona Sinhazinha por seu marido, o coronel Jesuíno. Tanto é que, no romance, até a centésima página[1] não se tem especulação maior do que as causas e circunstâncias da morte dessa senhora, que era até então tida como o pilar moral da sociedade ilheense.
Recentemente, o romance vem sendo reapresentado na TV sob a forma
de novela[2], a
partir de um remake datado de 1975. Nessa recente filmagem, a Dona
Sinhazinha foi brilhantemente representada pela atriz Maitê Proença, que, no
dia 08 de agosto (30º capítulo), foi assassinada com dois tiros pelo marido, o
coronel Jesuíno, na trama representado por José Wilker. Essa foi a última agressão desse homem a uma mulher que, em
todos os episódios anteriores, foi violentada de alguma forma, seja no âmbito
físico, psicológico, moral, sexual ou patrimonial.
Baseada na atuação da Dona Sinhazinha da
novela é que optei por tecer alguns comentários acerca da violência contra a
mulher no âmbito afetivo/doméstico, uma vez que a novela tende a deter um maior
acesso da população brasileira, se comparada ao livro. O objetivo é o de me
valer da dramaturgia para mostrar que, infelizmente, vale o ditado de que “a
arte imita a vida”. Assim como na ficção de Jorge Amado, na pequena Ilhéus de
1925, ainda hoje, em 2012, a mulher continua sendo violentada de diversas
formas, com agressões cada vez mais atrozes, até culminar, muitas vezes, em seu
assassinato.
Assim como a Dona Sinhazinha foi violentada
nos diversos âmbitos previstos pela Lei Maria da Penha[3], muitas
mulheres brasileiras ainda hoje estão sob o jugo do homem (na maioria das vezes
o agressor vem representado pela figura masculina), seja ele marido, namorado,
pai ou irmão. Também pode ocorrer com uma companheira, em caso de união homoafetiva, por
exemplo.
O simples fato de ela ser mulher é o que
determina o motivo pelo qual foi agredida e, baseado nessa condição de mulher,
é que o agressor(a) constrói o seu discurso de que tem o direito de violentá-la. Tem-se
aí como base uma relação de patriarcado, muito presente em sociedades sexistas,
em que há a desigualdade das relações entre homem e mulher, o que permite que
haja um exercício privado e institucionalizando de poder, controle e domínio,
usando-se como ferramenta para isso a violência[4].
Pois
bem, são cinco os tipos de violência doméstica, segundo a Lei Maria da Penha:
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Para evitar um texto muito
longo, aqui abordarei somente a violência sexual, que foi a mais pungente no
caso de Dona Sinhazinha.
Da mesma forma como o coronel Jesuíno usou
por diversas vezes a frase “Deite-se, eu
quero lhe usar”, ou “A senhora é
minha mulher e tem a obrigação de me servir”, ou mesmo “A mim só me interessa o que a senhora tem
entre as pernas”, muitas mulheres ainda escutam diariamente essas mesmas frases e são, cotidianamente, violentadas
sexualmente, obrigadas a manter relações sexuais com seus parceiros(as), sob a justificativa
de que esse é seu "dever de mulher”.
Esse é um claro exemplo de violência sexual,
que acontece na vida real em muitos lares brasileiros, e a mulher muitas vezes nem
se dá conta de que está em uma situação de extrema violação de direitos, talvez
porque esse discurso fica tão naturalizado na sociedade, que acaba correndo nas
veias como sangue[5].
Assim, essa situação de violência não é sequer problematizada, a ponto de a
mulher não deter a consciência de que seu corpo é de sua exclusiva propriedade
e responsabilidade, cabendo a ela a escolha de manter relação sexual se, quando
e com quem quiser.
A igualdade só pode ser obtida por meio da
conquista da autonomia por parte dessas mulheres[6] e dar
fim à violência doméstica só será possível quando pudermos falar claramente
sobre ela, quando pudermos entender os mecanismos que a engendram, e mais,
quando pudermos conferir visibilidade a essa luta pela preservação dos direitos
humanos.
[2] Gabriela, novela de Walcyr Carrasco, inspirada na
obra Gabriela cravo e canela, de
Jorge Amado. TV Globo, Licenciado por Warner Bros.
[3] Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.
[4] Grossi, P. K., Casanova, M. F e Starosta, M. , 2004.
Violência, gênero e políticas públicas. Porto Alegre: Edipucrs
[5] Prins, B. e Meijer, I. C., 2002. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Rev. Estud. Fem. [online]. vol.10, n.1, pp. 155-167.
[6] Saffioti, H., 2004. Gênero e
patriarcado: Violência contra mulheres. In A
mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo.
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